A T R E V E S - T E A E S C R E V E R ? #2 ( um conto )


( gatilhos: menção de sangue, depressão, morte. )



Novamente este rosto. Acho que estou a ser seguida. 


Parte de mim quer olhar para trás, justamente por cima do meu ombro, no momento em que abandono o café onde costumo ir para realizar os meus trabalhos. Quando me apercebi que alguém me observava, alguém que eu já tinha visto anteriormente, fechei o portátil rapidamente e após atirar tudo para dentro da mala, abandonei o local agradável. A minha reação súbita causou com que os olhares das pessoas no interior aterrassem em mim, o pânico que se instalou no meu peito agora era evidente como água cristalina sob o meu rosto.  
Talvez eu estivesse a endoidecer, mas porque haveria alguém de me seguir para algum lado? Eu não tinha nada para oferecer – muito menos para roubar. O meu portátil não funcionava sem o carregador ligado, o canto do ecrã estava quebrado por dentro, já para não mencionar o facto de viver num apartamento pequeno, onde as paredes eram demasiado finas.  
Os gritos dos meus vizinhos mantinham-me acordada à noite, o miar dos gatos vadios no exterior, os jovens que se encontravam todas as noites e faziam sempre uma festa mesmo já passando da hora para o silêncio.  

Mas nada disso importava, certo?  

Se alguém me estivesse a seguir... seria porque me queriam magoar? Um arrepio percorreu a minha espinha, os calafrios desconfortáveis a causarem com que acelerasse o meu passo. Sentia a sombra da pessoa misteriosa a seguir-me apesar de não sentir a coragem para me virar para trás e os enfrentar. E se a pessoa aguardasse isso de mim? E se me seguisse até casa? Não teria onde me esconder, não tinha quem ligar ou até um vizinho que confiasse o suficiente para me recolher na sua casa durante algumas horas.  

Engoli em seco. A minha garganta doía com o frio, o sinal de uma constipação ou gripe a aproximar-se, o meu corpo tremia e não apenas devido à temperatura no exterior, mas também o medo que ameaçava estremecer até o meu coração.  
A figura que aparecera durante dias não era a de um homem – muito pelo contrário. Estatura baixa, magra, roupas demasiado largas para a sua composição, cabelos escuros e os seus lábios eram bonitos e bem definidos. Nunca conseguia ver o seu rosto por completo, talvez por sempre usar um carapuço a tapar os seus olhos.  

Ganhei coragem por um segundo, apertei a alça da mala contra o meu peito e olhei para trás. O meu corpo virou-se completamente, as minhas botas pretas a pisarem as gotas de água que permaneceram no chão devido à chuva que assombrou a cidade há meia hora atrás. 

 
Precisamente antes de eu avistar aquele rosto.  
 
Deparei-me apenas com uma ruela, contentores com um fedor terrível no ar e um homem deitado a dormir no chão, com os cobertores molhados em cima de si.  

O meu coração apertou dentro do meu peito – eu sabia que estava a ser seguida, confiava no meu instinto de sobrevivência e, talvez, na paranoia que aparentava desfrutar com torturar-me. 
Ver coisas que não estão ali de facto, pessoas que me olham de uma certa forma na minha mente, demonstrando que me querem magoar, mas quando o pânico assenta... eles nem sequer repararam em mim.  
Eu era um fantasma na sociedade – não tinha amigos, sempre arranjei maneira de fugir do Passado e dos institutos onde era colocada, ninguém sabia o meu nome. Às vezes, até eu própria me esquecia. 

Os meus olhos vaguearam pelo beco em que me encontrava, certificando-me que isto não era apenas um produto da minha imaginação. Eu não estava a endoidecer, alguém me estava a seguir e eu sabia. Com um suspiro trémulo, sobressaltei-me quando o homem debaixo dos cobertos me agarrou o tornozelo e perguntou se eu tinha algum troco. Ainda amedrontada com a situação, apenas me afastei com um soluçar, virando as minhas costas e caminhando em direção a casa.  

A chuva começou a cair de novo, o ambiente havia mudado drasticamente desde que abandonei o café. O céu tornou-se mais escuro, as gotas caíam com mais intensidade e o meu coração pesava dentro do meu peito. Conseguia sentir a ansiedade a rastejar pela minha espinha, como um calafrio desconfortável, a obsessão que me preenchia desde a primeira vez que vi aquela figura estava apenas a causar com que eu me sentisse tão adoentada devido ao contorcer do meu estômago.  

Acelerei o passo – as minhas botas já tinham buracos nas solas, causando com que as minhas meias se molhassem completamente. Estremeci ligeiramente com o frio, com o pesar do meu corpo, a desconfiança que me levavam a olhar para trás a cada momento.  

Ninguém te está a seguir. Estás sozinha.  

Virei rapidamente numa esquina que dava acesso às escadas por detrás do meu apartamento. Os Londrinos não eram propriamente as pessoas mais calorosas que alguma vez encontrara, então eles não se importavam com os vizinhos. Se me esquecia da chave ou ficava trancada do lado de fora da casa e tinha de entrar pela janela.  

Assim que retirei as chaves do bolso, as mesmas caíram no chão e com esforço, agachei-me a apanhei-as. As minhas mãos tremiam, a minha respiração acelerava a cada momento e assim que abri a porta, entrei rapidamente como se ainda estivesse a ser seguida. Fechei a porta ruidosamente e encostei-me, assim permitindo-me deslizar pela mesma abaixo.  

- O que se está a passar comigo? 

Não houve qualquer resposta, pois como sempre, eu estava sozinha. Perdida, talvez, num mundo tao solitário que a minha mente causava cenários de perigo. Para me proteger, sempre fui eu sozinha, nunca precisei de ninguém... então, porque me sentia tão vazia agora?  
Como se a vida estivesse a ser, lentamente, sugada de mim. A minha energia desvanecia a cada respiração, a cada piscar de olhos.  

Levantei-me com esforço, após colocar a mala com o portátil no chão e caminhei em direção à casa de banho. Precisava de tomar um banho, sair destas roupas molhadas e relaxar juntamente com um chá quente.  
Os meus cabelos castanhos encontravam-se desgrenhados, as olheiras debaixo dos meus olhos azuis opacos a demonstrarem a exaustão e o quanto necessitava de uma noite pura de descanso, sem pesadelos. Fixei-me no espelho durante tanto tempo que quando me virei para a banheira, estranhei quando achei que o meu reflexo permaneceu.  

Ali no espelho, a minha reflexão permanecera no mesmo estado em que eu abandonara. Distanciei-me, porém o reflexo continuava ali. Estaria, de facto, a endoidecer? Isto não era possível, certo?  

Uni as sobrancelhas em confusão, os meus lábios a abrirem-se como um peixe fora de água para respirar, exceto as minhas palavras foram cortadas no momento em que ia falar. 

Deves estar a perguntar-te como isto é possível.” O reflexo no espelho falou, olhando-me com os meus olhos com um tom vermelho invés do azul, sorrindo com os meus lábios, porém azuis de tão pálidos, possuindo o meu rosto..., mas branco como a neve. 
Tentei falar, mas a minha garganta estava bloqueada, o meu reflexo já não me pertencia. “Durante tanto tempo, Allison, tentaste afogar-me com medicação, com antidepressivos, com terapia... nada resultou. Eu continuo aqui. 

Os meus olhos encheram-se de lágrimas enquanto me sentia a sufocar. Como se alguém me estivesse a apertar o pescoço com tanta força que o ar se tornara escasso, com tamanha maldade que eu não me conseguia mover. Testemunhando o meu reflexo a ganhar vida própria, os meus olhos cobertos de raias da cor do sangue. 

Eu sou a única que quer saber de ti, Alli. Não consegues ver? Porque tentaste livrar-te de mim? 

Eu queria responder, queria falar tudo o que pesava no meu peito, mas o reflexo apenas sorriu com maldade enquanto o seu olhar se focava no meu pescoço. Enquanto eu lutava para apenas mais uns segundos de ar, para conseguir ripostar, para conseguir sobreviver. 

Tenho-te seguido todos os dias da tua vida – adormecida dentro de ti, o pesadelo do qual te queres livrar, o fardo que te vai assombrar para o resto da tua vida... Eu, a Depressão, vou roubar tudo o que é teu.” O meu coração batia rápido dentro do meu peito, a dor que queimava a minha garganta apenas crescia enquanto o meu corpo levitava gentilmente, como se alguém me estivesse a sufocar no ar. “Da mesma forma como tu roubaste tudo de mim, eu vou possuir tudo o que é teu. Mas não te preocupes... eu vou-me tornar em ti, mas vou permitir que vivas dentro de mim. Para testemunhares, tudo o que me fizeste passar, eu vou-te fazer sofrer também. 

Num piscar de olhos, o som que me preencheu os ouvidos foi processado pelo meu cérebro antes de a dor me atingir. E tão rápido como chegou, também partiu. 


Acordei subitamente e apercebi-me, que por algum motivo havia adormecido no chão da casa de banho. O meu pescoço doía bastante e quando me levantei, confusa e dorida, observei-me ao espelho. Mas algo havia mudado...  

Os meus olhos haviam perdido a cor, eles eram agora cobertos por um tom de sangue. Os meus lábios azuis, a minha pele pálida. Estava tanto frio... eu tentei mover-me, abraçando o meu corpo gentilmente, mas sem qualquer sucesso em manter o gelo afastado de mim.  
Do outro lado do espelho, eu sorria.   

- Allison, querida, estás com mau aspeto. - Vi os seus lábios, cobertos de um tom rosado, a curvarem-se num sorriso repleto de malícia.   

- Deixa-me sair! Deixa-me sair daqui! - Gritei enquanto esmurrava o espalho, apenas para perceber que não existia nada à minha volta. O mundo havia sido consumido pelas sombras, pela solidão, pela tristeza e desespero.   

- Não te preocupes. Eu vou manter-te viva... perto do meu coração. - Um riso abandonou os seus lábios, os seus olhos azuis impiedosos. - Arranja uma forma de ficares confortável, querida Alli. Vais ficar comigo para sempre.

N/A:

 Decidi participar esta semana no objetivo criativo da Elisabete Moreira & da Vera Barbosa "Atreves-te a escrever?"
O objetivo consta em escrever um conto entre 500 e 1000 palavras com um tema de suspense!
 

Eu tenho de admitir que isto foi escrito um pouco à pressa e com mais desenvolvimento, talvez tivesse ficado um pouco mais elaborado! Eu sei como é viver assim, sentir-se sozinha, com depressão e como a mesma às vezes ganha mesmo que lutemos até ao fim para a manter debaixo de controlo.
A depressão é uma condição terrível e todos/as nós que lutamos ou já lutamos contra a mesma, sabemos como é nos sentirmos sufocados pelos nossos pensamentos menos bons, pela voz na nossa cabeça que nos trás para baixo. 

A Allison, infelizmente, foi controlada pela sua depressão devido ao seu isolamento, ao seu medo de pessoas e acreditar que ninguém a podia ajudar ou iria compreender. Então ela é forçada a ver a sua vida através dos olhos da depressão. 

Espero que tenham gostado deste pequeno conto, embora seja um pouco pesado. Deixem-me saber aqui ou no instagram ! ♡

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Comentários

  1. Olá, Ruth!
    Este conto foi uma delícia de leitura. Boas descrições, uma narrativa envolvente, dramática, que nos deixa a ansiar por mais. Uma peça de arte que tens aqui! Sabes muito bem relatar estados emocionais e criar cenários mentais complexos. Adorei!
    Obrigada por teres participado, esperamos ver-te no último tema do desafio. :)
    Um beijinho,
    Elisabete.

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  2. "Eu era um fantasma na sociedade – não tinha amigos, sempre arranjei maneira de fugir do Passado e dos institutos onde era colocada, ninguém sabia o meu nome. Às vezes, até eu própria me esquecia. "

    Fiquei tão triste e esta frase marcou-me tanto. Infelizmente a Alli não superou. Identifiquei-em com o que escreveste e gostei muito do teu conto.

    Continua a escrever Ruth. Beijinhos

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